segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Viagem para Fora

(Thiago Solito da Cruz, inédito)

Há não tanto tempo assim, uma viagem de ônibus, sobretudo quando noturna, era a oportunidade para um passageiro ficar com o nariz na janela e, mesmo vendo pouco, ou nada, entreter-se com algumas luzes, talvez a lua, e certamente com os próprios pensamentos. A escuridão e o silêncio no interior do ônibus propiciavam um pequeno devaneio, a memória de alguma cena longínqua, uma reflexão qualquer.

Nos dias de hoje as pessoas não parecem dispostas a esse exercício mínimo de solidão. Não sei se a temem: sei que há dispositivos de toda espécie para não deixar um passageiro entregar-se ao curso das idéias e da imaginação pessoal. Há sempre um filme passando nos três ou quatro monitores de TV, estrategicamente dispostos no corredor. Em geral, é um filme ritmado pelo som de tiros, gritos, explosões. É também bastante possível que seu vizinho de poltrona prefira não assistir ao filme e deixar-se embalar pela música altíssima de seu fone de ouvido, que você também ouvirá, traduzida num chiado interminável, com direito a batidas mecânicas de algum sucesso pop. Inevitável, também, acompanhar a variedade dos toques personalizados dos celulares, que vão do latido de um cachorro à versão eletrônica de uma abertura sinfônica de Mozart. Claro que você também se inteirará dos detalhes da vida doméstica de muita gente: a senhora da frente pergunta pelo cardápio do jantar que a espera, enquanto o senhor logo atrás de você lamenta não ter incluído certos dados em seu último relatório. Quando o ônibus chega, enfim, ao destino, você desce tomado por um inexplicável cansaço.

Acho interessantes todas as conquistas da tecnologia da mídia moderna, mas prefiro desfrutar de uma a cada vez, e em momentos que eu escolho. Mas parece que a maioria das pessoas entrega-se gozosa e voluptuosamente a uma sobrecarga de estímulos áudio-visuais, evitando o rumo dos mudos pensamentos e das imagens internas, sem luz. Ninguém mais gosta de ficar, por um tempo mínimo que seja, metido no seu canto, entretido consigo mesmo? Por que se deleitam todos com tantas engenhocas eletrônicas, numa viagem que poderia propiciar o prazer de uma pequena incursão íntima? Fica a impressão de que a vida interior das pessoas vem-se reduzindo na mesma proporção em que se expandem os recursos eletrônicos.

Imagem daqui.

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Sobre a Timidez

Não, neste post não sou eu quem vai falar sobre timidez. Mesmo sendo parte integrante do grupo dos tímidos, portanto tenho propriedade suficiente para falar sobre o assunto, deixo a cargo de um excelente escritor, a quem admiro.

Gosto de ler seus textos. E por acaso hoje, diante de leituras a que tenho me ocupado pelos últimos dias, encontrei o texto que aqui irei transcrever.

No mais, devo continuar um pouco afastada do blog. Como já falei, vida offline tem dessas coisas. Mas nada impede alguns olhares por aqui vez em quando.

Inté.


Da timidez

Ser um tímido notório é uma contradição. O tímido tem horror a ser notado, quanto mais a ser notório. Se ficou notório por ser tímido, então tem que se explicar. Afinal, que retumbante timidez é essa, que atrai tanta atenção? Se ficou notório apesar de ser tímido, talvez estivesse se enganando junto com os outros e sua timidez seja apenas um estratagema para ser notado. Tão secreto que nem ele sabe. É como no paradoxo psicanalítico: só alguém que se acha muito superior procura o analista para tratar um complexo de inferioridade, porque só ele acha que se sentir inferior é doença.

Todo mundo é tímido, os que parecem mais tímidos são apenas os mais salientes. Defendo a tese de que ninguém é mais tímido do que o extrovertido. O extrovertido faz questão de chamar atenção para sua extroversão, assim ninguém descobre sua timidez. Já no notoriamente tímido a timidez que usa para disfarçar sua extroversão tem o tamanho de um carro alegórico. Segundo minha tese, dentro de cada Elke Maravilha* existe um tímido tentando se esconder, e dentro de cada tímido existe um exibido gritando: “Não me olhem! Não me olhem!”, só para chamar a atenção.

O tímido nunca tem a menor dúvida de que, quando entra numa sala, todas as atenções se voltam para ele e para sua timidez espetacular. Se cochicham, é sobre ele. Se riem, é dele. Mentalmente, o tímido nunca entra num lugar. Explode no lugar, mesmo que chegue com a maciez estudada de uma noviça. Para o tímido, não apenas todo mundo mas o próprio destino não pensa em outra coisa a não ser nele e no que pode fazer para embaraçá-lo.

* Atriz de TV muito extrovertida, identificada pela
maquiagem e roupas extravagantes.

(Luís Fernando Veríssimo, Comédias para se ler na escola)