quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Trecho do livro O Lustre, Clarice Lispector

Clarice Lispector, in: O Lustre

“Sabia de um modo vago que já vivera alguma vez ultrapassando os momentos numa cegueira feliz que lhe dava o poder de seguir a sombra de um pensamento através de um dia, de uma semana, de um ano. E isso misteriosamente era viver se aperfeiçoando na obscuridade sem obter um fruto sequer dessa imponderável perfeição.

(...)

Tinha a impressão de que já vivera tudo apesar de não poder dizer em que momentos. E ao mesmo tempo sua vida inteira parecia poder resumir-se num pequeno gesto para frente, numa ligeira audácia e depois num recuo suave sem dor, e nenhum caminho então para onde se dirigir – sem pousar direito no solo, suspensa na atmosfera quase sem conforto, quase confortável, com a languidez cansada que precede o sono. No entanto ao seu redor as coisas viviam por vezes tão violentas. O sol era fogo, a terra sólida e possível, plantas brotavam vivas, trêmulas, caprichosas, casas eram feitas para nelas se abrigarem corpos, braços, contornavam-se ao redor de cinturas, para cada ser e para cada coisa havia um outro ser e uma outra coisa numa união que era um fim ardente sem além.”


Imagem daqui.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Viagem para Fora

(Thiago Solito da Cruz, inédito)

Há não tanto tempo assim, uma viagem de ônibus, sobretudo quando noturna, era a oportunidade para um passageiro ficar com o nariz na janela e, mesmo vendo pouco, ou nada, entreter-se com algumas luzes, talvez a lua, e certamente com os próprios pensamentos. A escuridão e o silêncio no interior do ônibus propiciavam um pequeno devaneio, a memória de alguma cena longínqua, uma reflexão qualquer.

Nos dias de hoje as pessoas não parecem dispostas a esse exercício mínimo de solidão. Não sei se a temem: sei que há dispositivos de toda espécie para não deixar um passageiro entregar-se ao curso das idéias e da imaginação pessoal. Há sempre um filme passando nos três ou quatro monitores de TV, estrategicamente dispostos no corredor. Em geral, é um filme ritmado pelo som de tiros, gritos, explosões. É também bastante possível que seu vizinho de poltrona prefira não assistir ao filme e deixar-se embalar pela música altíssima de seu fone de ouvido, que você também ouvirá, traduzida num chiado interminável, com direito a batidas mecânicas de algum sucesso pop. Inevitável, também, acompanhar a variedade dos toques personalizados dos celulares, que vão do latido de um cachorro à versão eletrônica de uma abertura sinfônica de Mozart. Claro que você também se inteirará dos detalhes da vida doméstica de muita gente: a senhora da frente pergunta pelo cardápio do jantar que a espera, enquanto o senhor logo atrás de você lamenta não ter incluído certos dados em seu último relatório. Quando o ônibus chega, enfim, ao destino, você desce tomado por um inexplicável cansaço.

Acho interessantes todas as conquistas da tecnologia da mídia moderna, mas prefiro desfrutar de uma a cada vez, e em momentos que eu escolho. Mas parece que a maioria das pessoas entrega-se gozosa e voluptuosamente a uma sobrecarga de estímulos áudio-visuais, evitando o rumo dos mudos pensamentos e das imagens internas, sem luz. Ninguém mais gosta de ficar, por um tempo mínimo que seja, metido no seu canto, entretido consigo mesmo? Por que se deleitam todos com tantas engenhocas eletrônicas, numa viagem que poderia propiciar o prazer de uma pequena incursão íntima? Fica a impressão de que a vida interior das pessoas vem-se reduzindo na mesma proporção em que se expandem os recursos eletrônicos.

Imagem daqui.